Conheça Lêda. Lêda, ou simplesmente Lê, é uma garota nos seus vinte e poucos anos, parecida com tantas Glorinhas, Marias, Paulas, Ivetes, Fabíolas. Lêda faz tudo como manda a cartilha: terminou a faculdade pública de Direito há um ano, estudou direitinho, passou na OAB de primeira. Tá estudando pra passar num concurso. Às vezes advoga algumas pequenas causas pra ganhar um dinheiro.
Lê leu os livros e viu filmes do Harry Potter, assistiu os filmes da trilogia do Senhor dos Anéis, chorou quando viu A culpa é das Estrelas. Ama cinema, pena que não tem grana sempre. Pega um cineminha de vez em quando nas quartas que é o dia mais barato. Nem sempre dá pra comprar a pipoca. Paciência.
Ledinha gosta de música antiga, rock antiguinho, essas paradas mais cult. Mas não é chata também. Canta um sertanejo de boas quando dá na telha. Se diverte com a galera, é flexível e está no meio termo. Nem super legal, nem super chata. Lê é normal, sabe? Garota normal. Nem milhares de amigos, nem nenhum amigo, nem cabelo enorme nem cabelo curto, nem muita tatuagem, só três pequenininhas em lugares que dá pra esconder. Nem bonita demais, nem feia. Eu diria que Lêda é uma garota bem bacana, um tipo bom, sabe?
Vai na igreja aos domingos, honra pai e mãe, é protetora dos animais, se bobear vai um dia participar do GreenPeace, se tudo der certo. Teve dois namorados na vida, namoros longos, eram meninos legais, mas não deu certo. Lêda sofreu mas superou. Não ficou traumatizada. A menina tem a cabeça boa, sabe?
Lê não passou no seu terceiro concurso, mesmo estudando 10 horas por dia. Sofreu bastante, mas superou. Não foi um trauma. Tanta gente é reprovada num concurso, oras. É o que o pessoal fala.
O tio ficou doente, doença grave. Eu esqueci de falar, mas Lêda é classe média legal. Bom, a família não teve condição de bancar o melhor tratamento. A fila de espera do Serviço de Saúde público era longa. O tio Geraldo faleceu esperando o tratamento. A família nunca atrasou nenhum imposto, apesar do arrocho salarial, mas tio Geraldo morreu. Sem tratamento. Mas acontece, tanta gente morre, não é? Lêda superou. Sofreu mas superou. Não foi um trauma.
Um dia o carrinho velho que Lêda herdou da tia avó parou na rua. Era o motor? Tomara que não seja o motor, Lêda pensou. Não vai sobrar dinheiro pro mecânico esse mês. Não era o motor, era só falta de gasolina mesmo. A gasolina tá cara pra caramba, não dá pra encher o tanque. Lê sempre abastece só pra ficar na reserva. Mas é assim mesmo, respira fundo, Lêda, podia ser pior.
Chegou o fim do ano e tudo que ela queria era praia, sol e sombra fresca. Que jeito? A família não tirava férias há muitos anos. Tempos difíceis. Um problema comum, também. Não é motivo de revolta, tempos difíceis, ué.
Outro dia foi o ladrão que entrou em casa. O cachorro de Lê levou bala. Foi tenso de aguentar. Pulguinha acompanhava a família já havia 6 anos. O vira-lata nem teve tempo de revidar o ataque: levou bala rapidinho. O ladrão levou algumas coisas como computador, televisão, microondas. Mas não matou ninguém. Aliás, matou Pulguinha, mas ele é cachorro, não conta muito. Todo mundo sofreu, foi difícil, mas todo mundo superou. Podia ter sido pior, podia ter atirado em gente, imagina. É agradecer ao Cosmos pela sorte e não reclamar da vida.
Cara, todo mundo superou, mas dessa vez Lêda decepcionou. Não conseguiu superar. Entrou em depressão. Quase ninguém entendia. Coisa de gente fraco, falta de um tanque de roupa suja pra lavar. Estuda mais que tá pouco, ocupa a cabeça que passa. Lêda tentou, mas não surtia efeito. Começou tratamento com psiquiatra, tomou remédio, mas precisava aliar com psicoterapia. Era caro. A família soltou cheques e mais cheques para pagar o psicólogo. Lêda estava triste e se sentia culpada, culpa que corrói. Não podia se dar ao luxo de adoecer. Depressão é doença de rico, ué. Pobre não tem o direito de diminuir sua produtividade assim de repente.
Mas Lêda surtou de vez quando decidiu cortar o cabelo curtinho, tatuar as costas inteiras de letras de músicas bonitas. Parou de estudar pra concurso. Botou mochila nas costas e cismou de viajar. Sem um centavo. A família desesperou. Mas ninguém conseguiu conter Lê. Ela ia, e foi.
Ninguém entendeu por quê. E você?